Interpretação Conforme a Constituição e a Revisão da Vida Toda: Uma Análise Profunda e Atualizada
1. O que é a Interpretação Conforme a Constituição (ICC)
A Interpretação Conforme a Constituição (ICC) é uma técnica de controle de constitucionalidade utilizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para preservar a validade de uma lei quando o texto admite diferentes leituras possíveis. Em vez de simplesmente declarar a inconstitucionalidade, o Tribunal afasta as interpretações incompatíveis com a Constituição e mantém em vigor o sentido que se harmoniza com os princípios constitucionais.
Esse mecanismo é essencial para assegurar a força normativa da Constituição sem anular normas infraconstitucionais que podem ser compatibilizadas com ela. No entanto, existem limites bem estabelecidos: a ICC só pode ser usada quando a lei comporta pluralidade semântica real, não pode reescrever o texto legal contra sua literalidade (a chamada vedação à interpretação contra legem) e deve respeitar o núcleo essencial da norma.
O STF consolidou esses parâmetros ao longo dos anos justamente para não assumir o papel de legislador positivo. A Corte atua como guardiã da Constituição, e não como autora de normas novas. Por isso, a ICC funciona como um instrumento para equilibrar a vontade do legislador com os direitos fundamentais protegidos pelo texto constitucional.
2. Aplicações Práticas da ICC pelo STF
O STF já utilizou a ICC em diversos casos para proteger direitos fundamentais e evitar retrocessos sociais. Um exemplo marcante ocorreu na análise do menor sob guarda como dependente previdenciário. Na ocasião, a interpretação literal da lei poderia excluir esse menor da proteção previdenciária, mas a Corte, valendo-se da ICC, reconheceu o direito à pensão por morte com base nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção integral.
Esse precedente demonstra que, em situações em que uma leitura literal levaria a resultados manifestamente injustos ou desproporcionais, o STF não hesita em adotar a interpretação conforme para salvaguardar direitos. É justamente essa lógica que pode inspirar uma solução equilibrada para a Revisão da Vida Toda (RVT), evitando que a regra de transição da Lei 9.876/99 produza efeitos excessivamente gravosos para determinados segurados.
3. A Revisão da Vida Toda no STF: Onde Estamos
A RVT ganhou destaque no STF com o Tema 1102 (RE 1.276.977), no qual, em 2022, o Tribunal reconheceu que o segurado poderia optar pela regra definitiva do art. 29, I e II, da Lei 8.213/91, que considera todo o período contributivo, quando essa regra fosse mais favorável do que a regra de transição prevista no art. 3º da Lei 9.876/99.
Contudo, em 21/03/2024, o STF, ao julgar as ADIs 2.110 e 2.111, afirmou a constitucionalidade da regra de transição, conferindo-lhe caráter cogente e afastando a ideia de livre escolha pela regra definitiva. Esse julgamento mudou o cenário, trazendo um viés mais restritivo em relação à RVT.
Mesmo assim, a discussão não se encerrou. Primeiro, porque o Tema 1102 ainda não transitou em julgado — existem embargos de declaração pendentes. Segundo, porque, nos terceiros embargos de declaração da ADI 2.111, julgados em 10/04/2025, o STF modulou os efeitos para:
- impedir a devolução de valores recebidos até 05/04/2024;
- afastar custas, honorários e perícias para ações ajuizadas até essa data.
Essa modulação mostra que a Corte reconhece a necessidade de proteger situações já consolidadas e dá espaço para discutir novas teses, como a própria interpretação conforme e a modulação para resguardar processos em andamento.
4. Como o STF Pode Aplicar ICC aos Arts. 3º e 29
A Constituição traz princípios fundamentais como dignidade da pessoa humana, isonomia, proporcionalidade, segurança jurídica e o caráter contributivo da Previdência Social. Com base nesses princípios, é possível defender que:
- O art. 29, I e II, da Lei 8.213/91 garante que o cálculo da média salarial leve em conta todo o período contributivo, sem cortes arbitrários;
- O art. 3º da Lei 9.876/99, como regra de transição, pode ser interpretado como um mecanismo de adaptação e não como uma barreira absoluta contra a aplicação da regra definitiva quando esta for mais favorável.
Em outras palavras, a interpretação conforme pode permitir que a regra de transição se aplique na maioria dos casos, mas sem impedir o uso da regra definitiva quando houver provas concretas de que ela garante maior justiça ao segurado.
Esse tipo de interpretação já foi adotado em outros casos pelo STF, como no exemplo do menor sob guarda, e serviria para equilibrar os princípios constitucionais com a legislação infraconstitucional.
5. Modulação de Efeitos: Proteção aos Segurados
Além da interpretação conforme, a modulação de efeitos, prevista no art. 27 da Lei 9.868/99, pode ser utilizada para limitar os efeitos de uma decisão e proteger expectativas legítimas.
No caso da RVT, uma solução viável seria:
- garantir a interpretação conforme para permitir a regra mais favorável;
- e modular os efeitos ex nunc, assegurando que todos os processos ajuizados até 05/04/2024 mantenham o direito à aplicação da regra definitiva.
Esse modelo já foi usado pelo STF em outros casos tributários e previdenciários, e até na própria ADI 2.111, onde o Tribunal reconheceu a irrepetibilidade de valores e a inexigibilidade de custas até a data de corte.
6. Exemplos Concretos
- Segurado com altos salários antes de 1994: A regra de transição exclui justamente os maiores salários da base de cálculo. A interpretação conforme poderia permitir a aplicação da regra definitiva para evitar redução injusta no benefício.
- Segurada com longos períodos sem contribuição após 1994: A regra de transição, somada ao divisor mínimo, achata a média salarial. A interpretação conforme permitiria afastar essa distorção em nome da proporcionalidade.
Esses exemplos mostram como a ICC pode proteger direitos sem anular a legislação e sem gerar benefícios automáticos a todos, mas garantindo justiça nos casos concretos.
7. Modulação como Mínimo Aceitável e a Luta pela Ampliação
A modulação de efeitos apenas para quem já ingressou com ação judicial deve ser vista como o mínimo aceitável, considerando a jurisprudência consolidada do STF e do STJ, que sempre protegeu a segurança jurídica e a confiança legítima dos cidadãos. Se o Supremo optar por uma interpretação mais restritiva, ao menos precisa garantir os direitos de quem buscou o Judiciário de boa-fé.
Mas a luta não para aí. Segue firme o trabalho para que todos os aposentados sejam contemplados, inclusive pela via legislativa, com projetos de lei e articulações políticas voltadas a corrigir eventuais injustiças e assegurar a dignidade de quem contribuiu durante toda a vida. O caminho judicial é essencial, mas a pressão no Congresso Nacional também é parte dessa batalha.
8. Status Atual e Recomendações aos Aposentados
Apesar das decisões desfavoráveis nas ADIs 2.110 e 2.111, o Tema 1102 não foi encerrado. Há embargos de declaração pendentes e a própria modulação já feita pelo STF mostra que a discussão ainda está aberta.
Por isso, os aposentados devem:
- Manter seus processos ativos, pois o julgamento definitivo ainda não ocorreu;
- Exigir transparência e dedicação do advogado. Se houver abandono ou quebra de confiança, o cliente pode substituir o profissional sem pagar multa, segundo decisões do STJ e o Código de Ética da OAB, que garantem remuneração apenas proporcional ao trabalho realizado.
9. Conclusão
O cenário da RVT é desafiador, mas não está fechado. A interpretação conforme e a modulação de efeitos oferecem caminhos constitucionais para proteger direitos sem desrespeitar a legislação. A modulação para processos ajuizados até 05/04/2024 é o mínimo esperado, mas a luta por uma solução que alcance todos os aposentados continua no Judiciário e no Legislativo.
Assim, quem já entrou com ação deve manter seu processo ativo e, se necessário, buscar outro advogado para garantir a melhor defesa. A história mostra que, mesmo após decisões restritivas, a mobilização jurídica e política pode abrir novas portas para a justiça social e previdenciária.